Polícia e racismo na USP
Mesmo no Alabama da abominável Ku Klux Klan, nos piores tempos do
racismo no século passado e início do atual nos Estados Unidos, imagino
que as imagens reveladoras de racismo explícito envolvendo a atuação de
policiais da PM paulista, esta semana, na repressão de estudantes no
campus da USP - a mais importante universidade pública do País - teriam
causado pelo menos duas consequências imediatas: mais incisiva reação
factual e opinativa dos meios de comunicação (a chamada grande imprensa
em especial) e mais forte e necessária indignação da sociedade.
O pior é que o silêncio ocorre não por falta de informação e provas,
como poderiam alegar alguns veículos de imprensa, mas por pura apatia ou
inércia. Em alguns casos, infelizmente, por cumplicidade e boa dose de
aprovação mesmo do truculento comportamento policial.
Afinal, este episódio de boçalidade e revoltante abuso de autoridade foi
fartamente documentado em vídeo dos mais acessados esta semana na
Internet no Brasil e em inúmeros países democráticos. Neste último caso,
com os inexoráveis arranhões para a "imagem modelar de democracia
racial" que o turismo e os governantes gostam de vender lá fora,
principalmente em festas de Ano Novo ou tempo de Carnaval.
A realidade é que o gritante atentado dentro da modelar academia de
ensino superior na capital paulista - onde estive nestes primeiros dias
de 2012 e de onde retornei para a Bahia na terça-feira, um dia depois da
divulgação do vídeo e de suas primeiras e frágeis repercussões fora da
WEB - tem passado até aqui praticamente ao largo do interesse das pautas
de nossos jornais, rádios e televisões.
Mesmo em Salvador, de onde agora escrevo estas linhas de protesto,
proclamada aos quatros ventos como "A Roma Negra do Brasil", a
repercussão tem sido ínfima. Uma lástima e um retrocesso, tanto no
terreno profissional da comunicação, como no campo das liberdades
democráticas e dos direitos humanos, o que é mais estranho, grave e
preocupante ainda.
O vídeo divulgado no YouTube rola na rede para quem não viu ou tenha curiosidade e interesse de ver.
Ainda assim, façamos uma breve memória do fato (como recomendava o
saudoso mestre do jornalismo impresso Juarez Bahia, ex-editor nacional
do Jornal do Brasil, oito vezes premiado com o Esso) para que o
essencial não se perca e tudo, afinal, não se reduza a retórica inócua
diante de um caso grave e que ainda cobra providências severas por parte
da PM, dos governantes e, evidentemente, da justiça , diante do
atentado condenável a preceito constitucional basilar.
O cenário da agressão policial é um espaço acadêmico no campus da USP,
zona oeste de São Paulo. O sargento André Luiz Ferreira, acompanhado do
soldado Rafael Ribeiro Fazolin, discute em um círculo de estudantes,
professores e servidores da universidade (quase todos brancos, ou quase
brancos) sobre uma questão ligada ao DCE. Como seria previsível em
"conversa" de estudantes com policiais armados dentro do campus, a
discussão fica acalorada e áspera.
De repente, não mais que de repente, o sargento André, uma espécie
rechonchuda e equivocada do Capitão Nascimento, de Tropa de Elite,
vivido magistralmente pelo ator baiano Wagner Moura, vira-se para o
único negro no grupo, um jovem de cabelo rastafári que participa da
reunião na ponta oposta da sala, e pergunta : "Você é aluno desta
universidade?". O rapaz responde afirmativamente. O policial então
ordena : "Mostre a carteira". O estudante diz: "Tenho minha palavra".
A reação é suficiente para desencadear toda fúria do PM, que saca da
arma no meio do local de discussão. Nicolas Menezes Barreto, estudante
de Ciências da Natureza na Escola de Artes, Ciências e Humanidades
(EACH) da USP, leva tapas e é empurrado para fora, pelo militar, alheio
às ponderações e protestos de alunos, professores e servidores da USP
presentes. O vídeo divulgado em alguns sites, blogs e na Carta Capital
(online) registra todo episódio, inclusive o momento em que o PM aponta a
arma para Nicolas. É só conferir.
As providências, até aqui, são as de praxe. Declarações formais do
governador Geraldo Alckmin, de São Paulo, de que sua administração não
tolera violência policial e atitudes flagrantemente racistas, como as
verificadas esta semana no campus da USP; o afastamento preliminar e a
promessa de punição dos PMs envolvidos, por parte do comando da
corporação; notas de entidades de direitos humanos e raciais e protesto
veemente de uma desembargadora paulista.
No mais, uma sindicância de 60 dias - tempo em geral mais que suficiente
para esquecer tudo por aqui - foi aberta para apurar o caso.
Resta, talvez, uma esperança ainda para que tudo não resulte em mais
impunidade no País: Que a chamada "grande imprensa" saia da passividade
diante deste flagrante de racismo, que humilha e enodoa e abra suas
pautas para acompanhar as "apurações" e cobrar opinativamente medidas
punitivas indispensáveis e urgentes.sábado, 14 de janeiro de 2012