sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019
RIOVERDEMS | Por PORTAL RIOVERDE NOTICIAS
Revista EXAME: Produção de carne orgânica em RIO VERDE ganha destaque em nível internacional.
Da fazenda Santa Fé do Corixinho, município de Rio Verde, a
pouco mais de 200 quilômetros de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, 500 bois
saíram para o abate no ano passado. Cerca de um terço desses animais, porém,
teve um destino diferente. Isso porque eles foram criados num sistema orgânico
de produção: livres de antibióticos, hormônios sintéticos, ração à base de
grãos transgênicos e pastagens tratadas quimicamente — seja com adubos, seja
com herbicidas — durante a maior parte da vida. Em seu cardápio só entraram
pasto natural, grãos livres de transgenia e probióticos (bactérias benéficas à
saúde dos animais).
No frigorífico, o abate desse gado é feito separadamente,
sem nenhum contato com bois criados de maneira convencional. Nas prateleiras
dos supermercados, por fim, um selo indica a origem da carne, que, além de
orgânica, é sustentável — causou o mínimo impacto possível à natureza. O preço
dos cortes chega a ser de 10% a 30% mais alto do que a média de outras carnes
consideradas nobres.
Área alagada do Pantanal, em Mato Grosso do Sul: a dinâmica
hídrica da região ajuda a fertilizar pastagens naturais | Germano Lüders
Para conseguir adequar os procedimentos à produção de carne
orgânica, o pecuarista e agrônomo Eduardo Cruzetta, de 43 anos, proprietário da
Fazenda Santa Fé do Corixinho, levou cerca de um ano e meio. Antes de se
preparar para atender aos critérios específicos da produção orgânica, Cruzetta
já era partidário de práticas de manejo sustentável. Desde que assumiu a gestão
da fazenda da família em 2009, ele dividiu a área em piquetes, ou seja, os
cercados que segmentam o pasto, para concentrar o rebanho em um deles por vez,
no lugar de deixar os animais livres para circular pela propriedade.
A técnica consiste em permitir que os bois pastem em um dos
cercados e, antes que o capim acabe, sejam transferidos para o cercado ao lado,
sucessivamente. Quando o boi retorna ao primeiro piquete, o capim já cresceu.
Isso evita a degradação da pastagem por exaustão e, consequentemente, a
derrubada de novas áreas de mata. Cruzetta também decidiu se dedicar ao cuidado
das pastagens nativas — são dezenas de tipos —, próprias do bioma Pantanal.
Algumas espécies, pouco produtivas, estão sendo gradativamente substituídas
pela braquiária, gramínea africana largamente utilizada no Brasil. Outras,
fertilizadas naturalmente pelo regime de alagamento próprio do Pantanal,
renovam-se ano a ano e, assim, tornam-se alimento de melhor qualidade para o
gado. “Essas áreas mantiveram a mesma capacidade de suporte do gado ao longo de
dez anos”, diz Cruzetta. “Sem esse tipo de manejo, já estariam hoje em estágio
de degradação.”
Desde 2016, o fazendeiro é membro da Associação Brasileira
dos Produtores Orgânicos, a ABPO, que reúne hoje 15 pecuaristas da região do
Pantanal e um rebanho de 80 000 animais. A associação, criada em 2001 com o
apoio da ONG ambientalista WWF, tem o objetivo de dar uma escala comercial ao
tipo de pecuária que, historicamente, se pratica ali. Por causa da dinâmica
hídrica da região, caracterizada pela alternância entre secas e cheias, o uso
extensivo do solo não é viável o ano inteiro. Isso torna o manejo sustentável
das pastagens nativas uma prática recorrente entre fazendeiros.
Mesmo depois de quase três séculos de tradição pecuária, 83%
da planície pantaneira ainda está preservada. “O modelo que aproveita melhor a
paisagem natural, sem grandes intervenções, é bom para o meio ambiente e também
é um diferencial de mercado para o produtor perante consumidores mais
exigentes”, afirma Julio Cesar Sampaio, coordenador do programa
Cerrado-Pantanal, da WWF Brasil, que acompanha de perto o dia a dia das fazendas
associadas e ajuda a medir o balanço entre produtividade e conservação. A
premissa do consumidor consciente é atendida — e tem gerado negócios. Desde
2015, o mercado de orgânicos cresce 30% ao ano no mundo. As mudanças
implementadas por gigantes do setor alimentício, como a Nestlé, que tem
incentivado a produção de leite orgânico no Brasil, reforçam a curva de
crescimento desse tipo de produto.
Mas não é toda grande empresa que enxerga um potencial de
expansão nesse nicho de mercado. Até 2010, a Associação dos Produtores
Orgânicos do Pantanal era fornecedora do frigorífico JBS. Na época, a empresa
pagava a cada produtor um prêmio de 10% sobre o valor da arroba do boi e vendia
esse produto a diversos varejistas, sem muito critério de segmentação de marca.
À medida que a companhia se tornava um gigante de commodities, porém, a
disposição para pagar mais pela carne orgânica foi diminuindo — e os produtores
precisaram, de novo, ir ao mercado para fazer valer seu diferencial.
A nova aposta veio da Korin, empresa que há mais de duas
décadas atua no nicho de alimentação natural e orgânica, com foco em frangos
criados fora de gaiolas, um negócio que cresceu 537% desde 2007. A empreitada
não se deu livre de críticas, já que a Korin se posiciona publicamente pela
redução do consumo de carne vermelha, por causa do impacto ambiental da
pecuária. “Vimos que era possível uma produção orgânica, de baixo impacto
ambiental e que promovesse a conservação de um bioma importante do país”,
afirma Reginaldo Morikawa, diretor-superintendente da Korin. A empresa, ligada
à igreja messiânica, tem como premissa o respeito aos animais abatidos e à
preservação do meio ambiente.
Foi preciso garantir também que o elo intermediário dessa
cadeia produtiva reconhecesse as oportunidades — e os desafios — de atender a
esse nicho de mercado. Na busca por frigoríficos parceiros, a Korin chegou ao
Naturafrig, que reposicionou a própria marca e mudou o nome (antes, chamava-se
Nave Carne). Em 2015, eram apenas dez animais abatidos por mês. Hoje, abate
cerca de 350 cabeças de gado no mesmo período. Apesar do crescimento, a
representatividade ainda é baixa: 5% da produção do Naturafrig vai para a
Korin. A projeção é que essa fatia chegue a 15% até o fim deste ano, na esteira
do crescimento da oferta de bois orgânicos pelos produtores. A expectativa vem
do incentivo dado recentemente pelo governo de Mato Grosso do Sul, que decidiu
diminuir em até 67% o imposto sobre circulação de mercadoria que incide no
abate orgânico. A desoneração funciona como uma espécie de pagamento por um serviço
ambiental: o produtor que promove a conservação do bioma é de alguma forma
remunerado por isso. “Fomentar a carne sustentável e a carne orgânica do
Pantanal é usar o potencial de conservação que temos para melhorar a condição
econômica do pecuarista”, afirma Jaime Verruck, secretário de Meio Ambiente,
Desenvolvimento, Produção e Agricultura Familiar de Mato Grosso do Sul.
A ideia é que se estabeleça um círculo virtuoso: mais
preservação, mais apelo ecológico para os produtos, maior demanda e maior
oferta. Por ora, a Korin está praticamente sozinha nesse mercado no Brasil.
Algumas marcas também compram de pecuaristas orgânicos do Pantanal sul-mato-grossense,
como a paulista Wessel, mas boa parte da demanda ainda vem da Korin. O negócio
da carne bovina orgânica da empresa já representa 8% do faturamento, atrás das
linhas de cortes de frango e de ovos, campeãs de receita, e já à frente das
categorias de peixes e cereais. Em todo o país, cerca de 1 000 toneladas de
carne bovina orgânica são comercializadas por ano — 60% mais do que o volume
registrado em 2015, quando a demanda caiu sob impacto da crise econômica.
PRODUTIVIDADE
Todos os pecuaristas que hoje fazem parte da Associação de
Produtores Orgânicos do Pantanal adotam um protocolo de produção de carne
sustentável — uma espécie de cartilha de boas práticas que, se seguida à risca,
garante que o produto chegue certificado às prateleiras. “A certificação é a
forma máxima de comunicação com esse consumidor de nicho, que, além de preço,
quer informação de garantia de origem”, afirma Leonardo Leite, pecuarista e
presidente da ABPO. Entre as obrigações do produtor estão a manutenção de áreas
de preservação permanente previstas em lei, a alimentação do gado com pastagens
nativas do Pantanal e a garantia do bem-estar dos animais durante todo o
processo produtivo.
A adoção das diretrizes já rendeu ganhos de produtividade a
boa parte dos pecuaristas. Numa fazenda convencional pantaneira, a taxa de
lotação gira em torno de três animais a cada 10 hectares. O devido cuidado com
as pastagens nativas do bioma, movimentando o gado e impedindo a compactação do
solo, aumentou a capacidade de acomodação do pasto: agora, cinco animais ocupam
o mesmo espaço de antes, sem prejuízo do ritmo de alimentação.
Como a região pantaneira é uma tradicional produtora de
bezerros, a produtividade das vacas também é um indicador importante. Hoje,
para cada 100 vacas em idade reprodutiva, nascem até 80 bezerros por ano.
Tradicionalmente, o número atingia no máximo 65. A despeito dessas vantagens, o
produtor que decide não só pelo manejo sustentável mas também pela produção
orgânica precisa se preparar para um decréscimo temporário de rentabilidade —
que pode durar até três anos — enquanto ajusta o sistema de produção aos novos
métodos. As mudanças têm valido a pena.
As experiências da região mostram que, seis anos após a
adequação da produção, a produtividade pode crescer cerca de 30%. Para
Cruzetta, da Fazenda Santa Fé do Corixinho, oito anos renderam um aumento de
50% na produção de carne, considerando a tonelada de boi vivo vendida. Hoje,
ele consegue concluir todo o processo de cria, recria e engorda dos bois na
própria fazenda, diferentemente da maioria dos pares, que vendem bezerros que
serão preparados para o abate em outros estados, majoritariamente no Cerrado
Central, área que inclui Mato Grosso e Goiás.
O pecuarista Eduardo Cruzetta: o manejo ecológico de
pastagens reduz o impacto da pecuária no solo | Germano Lüders
Dar escala a um modelo que oferece projeções de ganhos sem
diminuir as áreas ainda intocadas é o cerne da estratégia que se tenta fixar no
Pantanal sul-mato-grossense. E não por acaso. O Pantanal é a maior área úmida
contínua do mundo e chega a drenar 50 vezes mais carbono do que florestas, uma
característica estratégica quando se pensa no agravamento do aquecimento
global. A região também tem um papel importante de condicionamento climático no
país devido a seu regime de chuvas. Ainda assim, suas áreas mais altas têm sido
empurradas pela produção de soja, que já ocupa 200.000 hectares impróprios em
Mato Grosso do Sul — áreas em que o grão não poderia ter avançado, por causa
das regras do Código Florestal.
Especialistas alertam, porém, que não se deve olhar para o
Pantanal de maneira isolada, já que sua relação de interdependência com o bioma
vizinho, o Cerrado, é fundamental para qualquer política de conservação.
“Pensar em políticas para o Pantanal sem levar o Cerrado em consideração é como
pensar na copa das árvores sem suas raízes”, diz Júlio Cesar Sampaio, do WWF.
Quase 100% da água que abastece as bacias do Pantanal nasce no Cerrado, que já
perdeu mais da metade da cobertura original para a agropecuária.
Gado criado em sistema orgânico: a base da alimentação é a
pastagem nativa do Pantanal | Germano Lüders
A vantagem desse tipo de sistema produtivo não é apenas
ambiental — nem restrita ao nicho de mercado que vem se consolidando em torno
dos produtores pantaneiros. O Brasil, hoje o maior exportador de carne bovina
do mundo, ainda está aquém de seu potencial no segmento de carnes premium —
entre elas as oriundas de produção orgânica. De acordo com um relatório da
consultoria inglesa Future Markets Insights, o Brasil, ao lado da Argentina, é
um dos países latino-americanos com maior potencial nesse mercado por causa de
suas pastagens nativas permanentes, que podem ser manejadas sem uso de
químicos.
Atualmente, o mercado global de carne bovina orgânica é
avaliado em 8 bilhões de dólares e está concentrado na Europa, no Canadá e nos
Estados Unidos. A estimativa do mesmo relatório é que, até o final de 2027,
esse mercado deverá dobrar de tamanho, passando de 16 bilhões de dólares. Se os
pecuaristas brasileiros fizerem a lição de casa, buscando aliar o aumento da
produção com a preservação ambiental, podem sonhar em conquistar um bom naco
desse cobiçado mercado.
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019